sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Enquanto o relógio não desperta

fotografia de arquivo pessoal


Marcos Ozorio

Dia desses, conversando com uma professora amiga, ela me relatou o seguinte diálogo que travou com um aluno do 9ºano do Ensino Fundamental:

- Qual é professora, tô chegando atrasado porque não acordei.
- Tudo bem, mas o dia em que você chegar atrasado em um emprego a desculpa terá que ser diferente, pois...

- E a senhora acha que gente como nós vai ter emprego como a senhora, com patrão, horário, carteira assinada. Os que tiverem vão aprender a dar desculpa que patrão aceita ou vão mudando de emprego. Faz que nem minha irmã. Ela já trabalhou em cinco casas só este ano. Apronta, falta, patroa manda embora...
-Mas não custa nada você colocar o relógio para despertar...
-Fessora, a gente é diferente de vocês. Eu vou é trabalhar virado. Quero ser piloto de van. Melhor era ter uma minha, prá eu dirigir do Anil até o Rio da Prata. Mas prá isso eu tenho que crescer e vai ser difícil. Sei nem prá que estudar prá dirigir van.
-Eu não entendo! Você é um cara tão inteligente. Juro que não entendo. (...)

Nossa incompreensão é compreensível: não fomos formados nas universidades para compreendermos as diferenças, o diferente. Apresentaram-nos um padrão de aluno e a sociedade forjou outro, diverso, distante do padrão idealizado. Enfrentamos um problema identitário. Nossos alunos não querem ser aquilo que queremos para eles. Nossos alunos não têm o hábito de usar despertador.
Gritaria, pichações, violência física, “agressões” à norma culta da língua materna, tumulto entre tantas outras experiências sensoriais que o magistério vem experimentando de tempos para cá, acabam por nos afastar da possibilidade de acreditar em transformações, sem que para isso o sujeito seja esvaziado de sua identidade, mas antes, que estas se reafirmem na perspectiva do desenvolvimento, do conhecimento.
A falta de identificação entre docentes e discentes constitui, em larga medida, um dos maiores desafios que se apresentam para a educação contemporânea. Nossos padrões identitários são distintos e não se interpenetram. As fronteiras que nos separam são bastante rígidas. Ensinamos para um aluno que não existe e isso é tão grave quanto não existirmos para nossos alunos. O resultado mais perverso desse desencontro é o fracasso escolar.
A busca de caminhos que apontem para o encontro entre as diferentes identidades que habitam o espaço escolar é a porta para a saída do maldito fracasso. Mas como promover, efetivamente, o tal encontro?
As redes virtuais de relacionamento vêm, indiscutivelmente, promovendo encontros de tempos para cá. Que tal se a escola aproveitasse de fato o potencial agregador que as redes vêm demonstrando em favor do encontro das diferentes identidades que freqüentam o ambiente escolar?

Podemos iniciar a conversa. Aguardo comentários.

2 comentários:

  1. Interessante, vc ratifica o que vem acontecendo na sociedade discente e escolar. Sugere algumas intervenções mas repete algo que me incomoda muito: afirma que as redes sociais estão aproximando os discentes e que a escola deve aproveitar esse 'potencial agregador'. Ai eu pergunto como? E nao é um 'como' significando 'como fazer isso?'; e um 'como?' diante da formação de professores; diante da desvalorização total dos professores; diante da falta de perspectiva profissional; diante de escolas desestruturadas; diante da recepção de alunos organicamente deficiente no processo de assimilação do conhecimento (falta de amor, alimento); e principalmente hoje diante de uma informatização da escola que nao respeita o tempo de aprendizado do professor.

    Sua historia é interessante e temos que estar alertas, mas a solução talvez só ocorra com ajustes nas dinamicas sociais e em parceria com todas as instituições (familia, escola, religiao).

    A perda da identidade é adquirida livremente em nossa sociedade pelo esvaziamento generalizado do poder de pensar. Em nosso tempo pensar foi reprimido da arena social, logo educacional.

    Nao estou negando sua escrita, ela é contundente e otima para se usar entre professores; meu incomodo está na valorização do produto final do problema: o aluno.

    O professor é o mediador, o desafiador, o interativo, mas é preciso dar-lhe tempo para assimilar tantos novos recursos e ferramentas digitais ou virtuais em sala de aula, senao ficamos brincando de amigo imaginário, entende? Professores esvaziados de sentido tentando ensinar para alunos ideais e nao reais pq nao compreendem suas expectativas e novas cognições.

    Ufa! Adoro esse blog! Ele me faz pensar tb... Bjos

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  2. Maria Claudia,
    Acato todos os seus comentários e fico contente em notar que existem profissionais e pessoas como vc que ainda se inquietam com as questões que envolvem a escola.
    Meu texto, na realidade, é uma provocação para pensarmos juntos em saídas possíveis para a escola pública, tal como a mesma se encontra nestes tempos difíceis.
    Aguardar mudanças estruturais é tudo que sonhamos, mas talvez não tenhamos tempo de vida suficiente para tanto. Enquanto isso, gerações e gerações de alunos desfavorecidos pagam o preço com desemprego, trabalho informal, para não citar males piores que os acometem.
    Creio que, apesar de difícil, podemos buscar caminhos que dependam menos de políticas desastrosas ou mesmo do descaso dosnossos governantes com a população e com a escola pública.
    Os problemas estruturais de nossa sociedade não se resolverão rapidamente e, percebo um sentido de urgência na reversão do fracasso escolar.
    Por isso, pensando na crise identitária que ronda o ambiente escolar, acredito que devemos ao menos tentar uma aproximação que não esteja no rol das convencionais. Como vejo - em minha casa e na escola - que as redes sociais fazem o maior sucesso entre adolescentes (o Brasil é o país com maior número de usuários do Orkut)acredito que podemos capitalizar em torno desta ferramenta interativa em favor da escola, dos alunos e dos professores.
    Não acho que ficaríamos brincando de amigo imaginário, mas que poderíamos ressignificar o nosso trabalho, recheando-o de mais valor; tudo de verdade e não de mentira como são os provões e apostilas mal elaboradas que nos fazem engolir nos últimos tempos.
    Não acredito na cartilha do Banco Mundial seguida a risca pelo MEC, pela SME...
    Vamos continuar esta conversa, se possível com mais pares a fim de expandir nossas inquietações.
    Um grande abraço.

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