Maria Inês de C. Delorme
Cumbuco, litoral do Ceará, início de 2010. A famosa praia é loteada por quiosque, mesas, turistas do mundo todo e nela se infiltram meninos pobres da região que vivem de um trabalho muito interessante, desenvolvido com uma energia visível. Eles se aproximam muito rapidamente mas só daqueles que têm máquina fotográfica digital e oferecem seus serviços “sem precisar pagar, mas se gostar, dá um agrado. Só no final”.
A abordagem é incisiva e assustadora para alguns mas os garçons garantem pela sua idoneidade dizendo: “não se assuste, eles são da praia, estão sempre aqui.” Com este endosso, eles nos cercam ainda mais facilmente mas não nos ameaçam, mesmo gerando alguma estranheza dada a natureza do serviço. Eles sabem mexer em todos os tipos de máquinas digitais e logo perguntam: “você quer uma foto onde você parece estar dando um soco na cara dele? Quer um óculos de formigão enorme no seu rosto?” E as perguntas vão acontecendo enquanto o turista, seduzido pela movimentação do fotógrafo, vai cedendo e se tornando o personagem de um cenário montado com boas noções de perspectiva, relações planejadas de espaço e tempo, superposição de imagens do corpo com a natureza e muita criatividade. Em fração de segundos uma mão espalmada pode ser fotografada segurando o sol, este mesmo sol pode sair espelhado nos óculos escuros da moça e por aí vai, mas sempre usando o dono da máquina e a máquina do dono_ “ele se vê e leva a foto com ele. Se não gostar eu faço outras até gostar, mas não precisa pagar. Basta um agrado no final.” O Cassio, de 12 anos, aceitou conversar sem medo de deixar escapar seus segredos fotográficos além de ter nos ensinado, ainda, como tirar fotos em seqüência, “sem tirar o dedo do disparador para poder dar movimento à imagem, até um surfista pegando onda dá para fazer", disse. E ele fez, rapidamente. Criativamente, com os olhos brilhando de desejo.
Ao ser perguntado sobre sua vida escolar, em que ano estava etc., Cássio disse com muita reserva e vergonha que não sabia ainda ler nem escrever, que só gostava de trabalhar com fotos mas que na escola dele só tinha um “a, e, i, o, u” muito chato. “Número e letra sem parar, nem poder desenhar” mas que ele não aprendia nada, nem ninguém, que até agora só sabia escrever casa e casaco, “Ypióca (ele apontou para o outdoor próximo) eu não sei, porque tem letra aí que não tem na minha escola, minha professora disse que é palavra de índio.”
A minha gana de professora alfabetizadora emergiu e, com uma caneta no papel que forrava a mesa começamos a conversar sobre o que ele sabia sobre seu nome, sobre casa e casaco. Ele foi escrevendo com medo de errar e mostrou saber separar as palavras que conhecia em sílabas, algo como algum resquício de uma ação escolar distante e sem significado, mas presente. Em seguida, refletindo juntos sobre os pedaços de palavras que ele titubeando encontrava (as sílabas), ele descobriu porque sabia escrever casa, casaco e Cássio, mas não Ypióca. Enquanto montava palavras com pedaços de palavras ele ria muito, parecia feliz e me pedia: “escreve tia, o que eu já sei para eu não esquecer mais.” E acabou dando uma cambalhota de alegria ali, na areia da praia, sem dar tempo de ser fotografado. Ao se despedir, pediu: “tira, agora, umas fotos minhas na sua máquina digital? Mas quero fotos de eu tirando fotos, fazendo cenas, ta?” E assim fizemos.
Meninos geniais, alegres, curiosos e criativos que, sem nenhuma dúvida, engrossam os altos índices de trabalho infantil do país, o que é muito ruim mas, pior ainda, é que são parte de um outro escore perturbador_ o dos que se mantém analfabetos e excluídos das possibilidades de sucesso, mesmo freqüentando os bancos escolares.
E a mídia que estas crianças operam, com a qual interagem e que com ela criam, mesmo sem serem donos de nada (no caso de Cumbuco), parece permanecer fora da vida da escola quando não, em tantos outros espaços escolares, serve apenas como instrumento para ampliar mosquitos e larvas que sem a tecnologia subutilizada como recurso talvez não viessem a ser estudadas.
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